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quinta-feira, 9 de junho de 2011

O FUJÃO DE AURÉOLA

Nem todos os milagres de todos os santos, juntos, poderiam se equivaler ao sucedido na igreja matriz de São Genésio do Oeste, diocese de Lapinha Grande, no grande sertão brasileiro.
Não foi invencionice do povo, não, eu juro. Tampouco visagem coletiva. Nem o padre Baeta, com seminário no Rio de Janeiro, soube explicar “tamanha graça celestial”, ao dirigir sermão para aquela povoação de gente sertaneja.
O caso foi o seguinte: certa manhã em que o tempo não tinha sol nem chuva, só aquele chumaço de nuvens cor de cimento roubando a luz do dia, a beata Verenciana descobriu que o santo padroeiro fugira do altar. Meteu a chave na porta imensa de imburana e simplesmente, “por artes do malino”, como gritou na praça principal, deu com os sapatos de madeira de São Genésio — “sem o corpo” — sobre o mármore. O santinho havia fugido descalço!
Logo toda a paróquia — e não só, mesmo os poucos evangélicos e os dois ou três espíritas de mesa da cidade — acorreu à igreja para testemunhar a fuga milagrosa. Pois em cidade pequena é assim: qualquer acontecimento, até o mais banal, precisa de todos os olhos para dar fé e de todas as bocas para comentar. Que dirá uma absurdidade daquela.
Com o passar das horas, veio vindo gente das povoações mais próximas; com o passar dos dias, curiosos de toda a região e até da capital do estado, no meio deles um bando de jornalistas armados de microfones e cinegrafistas com o olho de ciclope devorando a imagem dos sapatos pretos do santo, sozinhos por cima do sacrário.
Como não poderia deixar de vir, veio dom Sezefredo, bispo de Lapinha Grande. E o povo em torno, após o beija-anel, esperava a avaliação de Vossa Excelência Reverendíssima sobre o episódio que a gaiatice popular já batizara como o do santo fujão. “Inexplicável”, espantava-se, mal sustendo a mitra na cabeça, ao chegar paramentado como em dia de festa. “Inexplicável”, repetia. E apelava para os santos mistérios, como defesa para a inexistência de explicação. A legião de padres e monsenhores que acompanhava o príncipe da Igreja pedia “calma!”, com uma ponta de rispidez, mas a massa humana não admitia um despautério daqueles e exigia a volta imediata do padroeiro. Quanto mais clamava, mais fechava o cerco em torno do bispo. O jeito foi fazer dom Sezefredo sumir também da pequena igreja, antes que fosse pisoteado pelo fanatismo dos fiéis.
Veio ainda um especialista criminal investigar a hipótese de roubo, para acabar de vez com essa versão, sustentada pela minoria pentecostal. A essa altura, todo o adro da igreja fora cercado com placas de madeira e o acesso impedido ao contribuinte comum. O homem de São Paulo trouxe a tiracolo um outro especialista, este em obras de arte do Barroco brasileiro, a fim de atestar a autenticidade dos sapatos abandonados. “Originais”, o perito garantiu, antes de assinar o documento necessário. Ambos se impressionaram, porque os sapatos não estavam partidos ou descolados ao nível do calcanhar; estavam mesmo incrivelmente descalçados, as cavidades à mostra, inclusive exalando um cheiro desagradabilíssimo — afinal, durante 250 anos haviam forrado os pés do santo... Coube à beata Verenciana a colocação providencial de trinta vasos com rosas, para atenuar um pouco o beatífico chulé espalhado pela nave central.
Impossível, após a intervenção de dois especialistas de tão alto gabarito, manter o caso fora da repercussão internacional: a BBC, CNN e ABC enviaram correspondentes a São Genésio do Oeste, que virou primeira página do The New York Times, junto à manchete sobre a eleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos.
E aí...
Passado um mês, o povo começou a se acostumar com o sumiço do padroeiro, igual à família que aceita a saída do pai “pra comprar cigarros”, sem nunca mais dar as caras. Antes disso, um terremoto de 9 graus na escala Richter em Bangladesh já levara embora a imprensa estrangeira; uma enchente do rio Vermelho arrastara os jornalistas da região; a notícia de mais uma santa que chora atraíra a atenção dos dignitários da Igreja para uma cidadezinha ainda menor, ao norte do estado. Até o padre Baeta, burocrata convicto, aceitara rezar missas ao pé de um mero par de sapatos santificados, datados de 1753, em vez de reivindicar a entronização de uma outra imagem de São Genésio. Só mesmo dona Verenciana, na solidão da limpeza diária, persignava-se toda vez que ia espanar o mármore do sacrário, inconformada com aquela primeira e única vitória do demo sobre as hostes de Deus.
E foi quando toda a cidade não dava mais pelo causo, quando a vidinha dos paroquianos havia retomado sua sem-graceza de sempre, que, milagrosamente como fugira, o padroeiro voltou ao posto secular. Aberta a porta em um domingo nublado, para varrer e tirar pó, a beata quase teve uma síncope ao pousar os olhos incrédulos nas pupilas mortas, pintadas a tinta, da estátua de madeira. “Nosso senhor venceu...”, foi tudo o que balbuciou antes de cair estendida entre dois bancos de imburana. Outra vez acorreu o padre, e o povaréu, Vossa Excelência Reverendíssima, imprensa de dentro e fora do país, especialistas de São Paulo e até o presidente da república, que na ocasião do sumiço estava numa reunião do G20 em Durban, África do Sul. Todos quiseram ir olhar e puderam depois comprovar, num processo da Santa Sé, mais este milagre do mártir que no século terceiro foi comediante em Roma, com fama de irreverente e polêmico.
Somente uns cabras mais safados, dados a escapulidas fora do casamento, souberam — mas, óbvio, não puderam contar — o estranho relato de dona Ambrosina, cafetina do único bordel do lugarejo, sobre um hóspede que passara sob seu teto dois longos meses de preguiça e luxúria, entremeadas com o pecado da gula. Diziam as quengas que o receberam na intimidade das coxas roliças que o desconhecido, “um tipo cheio de histórias engraçadas”, pagava pelos serviços com antigas moedas de ouro e prata. Tinha os membros do corpo tão rijos como pau de dar em doido. E surgira e se fora em manhãs cinzentas sem sol nem chuva, descalço como veio ao mundo.


* Selecionado no Concurso Nacional de Contos de Humor, realizado pelo Grupo Farroupilha (de teatro), em parceria com o Clube dos Escritores de Ipatinga (CLESI), em 2010.